Onde a língua alemã vive
Na Semana da Língua Alemã em Blumenau, o Santa mostra onde se fala o idioma, a importância para a cultura e as vantagens no mercado de trabalho
“Alles Gut!”, entoam em alto e bom som os 14 alunos, todos com nove anos, quando a professora de alemão pergunta como eles estão em uma das salas da Escola Isolada Municipal Alves Ramos, na Itoupava Central. “Hallo”, cumprimentam tímidos e um pouco corados os moradores da Vila Itoupava, em Blumenau. Talvez muitos desconheçam, mas no Centro da cidade há pessoas que durante 90% do horário de trabalho conversam em alemão dando suporte aos clientes, ligações vindas do outro lado do oceano Atlântico. Aos primeiros domingos de cada mês, fiéis também se reúnem em igrejas luteranas para acompanhar o culto celebrado em alemão e relembrar a língua aprendida dentro de casa.
As palavras Haus (casa), Kochkäse (queijo cozido), Apfelstrudel (strudel de maçã) e tantas outras fazem parte do vocabulário de quem tem no sobrenome mais consoantes do que vogais, mas também de Souzas, Silvas, Pereiras e Oliveiras. As palavras que soam estranhas ao primeiro contato se tornam parte do cotidiano, sem que os habitantes de Blumenau percebam. Não raro, os moradores corrigem os mais desavisados que confundem a pronúncia de algumas palavras, como dizer o nome Paul, com pronúncia pôu (em inglês) pela correta paul (em alemão) ou Spernau, com pronúncia spernô (em francês) pela spernáu (em alemão).
Heranças deixadas pelo filósofo alemão Hermann Bruno Otto Blumenau desde a fundação do município em 1850 e que dá a cidade o título de uma das mais germânicas do país. Apesar de se falar alemão por aqui não há pesquisas que mostrem o número de falantes na cidade com mais de 300 mil habitantes, informação que ajudaria a entender a evolução do idioma e de comunidades bilíngues. Língua viva na região das Itoupavas e da Vila Itoupava, onde crianças aprendem o idioma dentro de sala de aula, mas arriscam as primeiras falas dentro da família.
Assim como a Semana de Língua Alemã, evento que resgata o idioma em todo o Brasil, há ações que dão o pontapé inicial de incentivo em Blumenau, como o Plures, projeto da Secretaria Municipal de Educação (Semed), que desde 2013 oferece aulas de alemão a 5,7 mil alunos na cidade. Na Escola Isolada Municipal Alves Ramos, na Itoupava Central, os alunos têm uma vez por semana aulas com a professora Rosimeli Zech Matias, que no total leciona para 23 turmas. Ela é uma das poucas profissionais formadas em Letras, com licenciatura em Alemão pela Furb.
– Atendemos a demanda de uma comunidade que tem o alemão falado em casa, mas que vive apenas da oralidade. Na escola trazemos essas palavras e esse diálogo feito em casa para a escrita e a gramática. É preciso mostrar e valorizar a língua que existe, que é falada com a oma e com o opa – alerta.
Foi a língua falada em casa e mais tarde aperfeiçoada na escola que oportunizou o intercâmbio de Thais Jandre, 16 anos. Estudante da Escola Barão do Rio Branco, no Centro de Blumenau, a pomerodense que estuda há três anos na cidade embarca em maio para Jena, na Alemanha. Ela foi uma das selecionadas em uma bolsa de estudos financiada pelo Projeto Pasch, em parceria com o Instituto Goethe. No total, 30 alunos da entidade, que tem a língua dentro do currículo desde os primeiros anos, passaram pela experiência fora do país, segundo a professora responsável pelo projeto na escola Iracema Bauer Krueger.
– Vou aproveitar a oportunidade para decidir o curso universitário que vou seguir, ainda estou em dúvida mas bastante empolgada com a oportunidade. Aprendi o alemão em casa, até hoje só falo em alemão com a minha oma, e fico feliz de ter essa oportunidade de viajar e conhecer uma cultura diferente – comemora Thais.
Pensando justamente em pessoas como a avó da estudante que a igreja luterana resgatou os cultos em alemão em Blumenau. No primeiro domingo do mês, os pastores Milton Jandrei, da paróquia do Centro, e Renato Creutzberg, na Itoupava Seca, reúnem fiéis, em sua maioria idosos, para resgatar essa memória afetiva e religiosa.
– Reviver essa fé é resgatar não só a língua, mas lembranças de pessoas que aprenderam as orações em alemão dentro de casa. Eles ficam emocionados e com certeza esse culto tem outro significado para eles – ressalta do pastor Creutzberg.
Herança cultural e política de uma época em que não se podia falar a língua, mas também como sinal de resistência, o idioma segue vivo entre os habitantes da Vila Itoupava. O comerciante Ademir Kaschinski, 49 anos, é um dos moradores que mantém a língua no cotidiano. Ao lado de Anésio Klabunde, 40 anos, eles conversam em alemão na calçada, hábito comum entre os moradores da região.
– Tento passar para a minha filha em casa, mas ela já é um pouco mais resistente. Quando fui para a escola, não sabia falar português e as pessoas ficam contentes quando no trabalho converso com elas em alemão – conta Klabunde, atendente de caixa.
Do idioma que sobreviveu na região das Itoupavas — e ainda hoje é falado bastante na localidade, mesmo que timidamente na presença de “estrangeiros” — nasceram adaptações. Diferente do alemão formal aprendido nas escolas ou usado em grandes empresas da cidade, este mais próximo do que é ouvido na Alemanha, o dialeto da região Norte de Blumenau se modificou.
A professora Valéria Contrucci de Oliveira Mailer, coordenadora do curso de Letras - Língua Alemã da Universidade Regional de Blumenau (Furb) explica que houve um fenômeno natural do contato entre línguas – de uma mistura entre os idiomas – em todo o Vale do Itajaí. Após a Campanha de Nacionalização da Era Vargas, as pessoas passaram a não ter mais contato com a língua escrita e mantiveram apenas a oralidade, passada de geração para geração.
– Até 1937, antes do Estado Novo, a maioria das pessoas aqui era falante de alemão. Mas depois a língua foi proibida, as escolas foram fechadas e a imprensa proibida de circular e publicar em alemão. Então o idioma ficou na zona rural, em áreas mais afastadas e, consequentemente, foi estigmatizada e houve preconceito – explica.
No senso comum não se compreende e gera críticas, mas a adaptação de palavras que não são encontradas no vocabulário alemão acabaram sendo feitas por termos em português. É assim em todos os lugares onde duas línguas se encontram, salienta Valéria.
– Na Alemanha há 320 dialetos. Então, qual é o alemão da Alemanha? A gente não tem um padrão de oralidade. Temos uma pesquisa de um professor paranaense e ele chegou à conclusão que foram justamente esses empréstimos que mantiveram a língua viva. A estrutura da língua as pessoas dominam, que é o mais difícil.
A oralidade do alemão entoado nas ruas de Blumenau e o falado na Alemanha tem lá suas diferenças, mas é importante não acentuar essa ideia, enfatiza a doutora em Linguística Aplicada Maristela Pereira Fritzen.
– Toda língua em uso se modifica. Quando se destaca as diferenças da oralidade, da pessoa que aprendeu a língua passada pelos pais e avós, se propaga a baixa autoestima linguística de toda uma comunidade. Alemães que vêm para o Brasil conseguem, sim, conversar com quem aprendeu a língua em casa, por exemplo. Mesmo sem os moradores daqui terem saído do país ou aprendido a língua na escola.
Para Maristela, o fato de a comunidade ter resistido e permanecido falante nesta língua “proibida”, mesmo só usando o idioma em casa, fez com que o alemão permanecesse vivo. Mas segundo ela é preciso ir além e pensar em políticas públicas que perpetuem essa riqueza cultural e linguística:
– A gente vê que existe potencial muito grande. As crianças ainda vão para as escolas falando alemão, conversam em casa e se o idioma está presente nas comunidades significa que muitos crescem no ambiente bilíngue. É preciso valorizar essa pluralidade, não apenas do alemão, mas de todas as línguas. No Brasil não se fala apenas português, se fala alemão, italiano, polonês etc.
A cultura germânica está presente na mesa dos moradores, com iguarias que vão das tradicionais e deliciosas cucas ao Kochkäse, queijo cozido proveniente de fermentação natural, encontrado em feiras e eventos típicos. A Alemanha também está nas cores do Parque Vila Germânica, sede de eventos culturais e casa da Oktoberfest, em Blumenau. A germanidade sobrevive no Centro Histórico da cidade e no estilo arquitetônico de casarões, mas ainda está distante da totalidade oral do seu povo – com exceção de famílias que passaram o conhecimento a novas gerações, de cultos luteranos celebrados em alemão, de nomes de ruas e algumas poucas palavras incluídas no cotidiano de seus habitantes e das tradicionais músicas da festa mais germânica do Brasil, claro.
– Há vários fenômenos ao mesmo tempo. Com a língua proibida ela foi ignorada, mas depois começou a surgiu o interesse pelas festas em 1980, pela questão econômica, os clubes de caça e tiro, as danças folclóricas e a língua acabou ficando um pouco para trás. Até certo ponto foi a campanha de nacionalização, mas faltou engajamento político para fazer uma ponte e valorizar o alemão – explica a professora Valéria Contrucci de Oliveira Mailer, coordenadora do curso de Letras - Língua Alemã da Furb e membro do Conselho Municipal da Língua Alemã, criado em 2007.
A professora e diretora do Patrimônio Histórico-Museológico da Fundação Cultural de Blumenau, Sueli Petry, relembra que somente em 1970, quando se começou a falar sobre o resgate da língua, o alemão foi inserido como disciplina alternativa na rede municipal de ensino, após quatro décadas de hiato.
– As ruas mudaram de nome, as escolas foram rebatizadas e não se podia falar em alemão ou qualquer outro idioma. Há uma exposição voltada exatamente sobre toda esta história da língua aqui em Blumenau no Mausoléu da Fundação Cultural, com livros didáticos em alemão e painéis – salienta.
O presidente da Vila Germânica e secretário de Turismo e Lazer de Blumenau, Ricardo Stodieck, ressalta que para fortalecer a língua dentro do turismo é preciso de mais ações em prol do idioma e afirma que é preciso sim, ter mais profissionais fluentes em alemão na cidade:
– A língua faz parte da nossa cultura, da nossa festa e está presente na história de Blumenau. Claro que é preciso ter mais incentivo, pois a partir do momento em que somos considerados um pedaço da Alemanha no Brasil, os turistas esperam que as pessoas falem alemão. Para isso é importante que tenhamos profissionais fluentes do idioma, claro. Isso fortalece o turismo e cria vínculos.
A doutora em Linguística Aplicada, Maristela Pereira Fritzen, ressalta a importância de se ter políticas públicas para que o incentivo de fato se torne uma realidade realidade:
– Tem que se investir na língua. É preciso pensar ações e projetos e não apenas em estímulos isolados, que são importantes também. É preciso dar continuidade. Afinal, com a migração e imigração o Brasil tem cada vez mais uma pluralidade de línguas. Por muito tempo foi proibido falar outra língua, mas quando as festas surgiram foi como se fosse permitido ser alemão – menciona Fritzen, com olhar crítico.
– Quem domina a língua alemã não trabalha apenas como tradutor ou na área de turismo. É preciso mudar esta visão, pois há muito sendo criado na Alemanha, o país é referência em diversas áreas científicas, por exemplo – explica o presidente do Conselho Municipal da Língua Alemã em Blumenau, Markus Blumenschein.
O alemão e incentivador da valorização do idioma por aqui é também diretor-executivo da T-Systems, multinacional alemã que tem 550 funcionários na área da tecnologia da informação. Destes, 350 trabalham falando alemão diariamente com pessoas que estão do outro lado do Atlântico. A maioria dos colaboradores é do Vale do Itajaí e tem um histórico familiar, escolar ou cultural arraigado na cultura germânica. A escolha por Blumenau se deu justamente por conta desta demanda.
– Viemos para cá pois havia um polo de tecnologia da informação forte, com especialistas, e por ter grande número de pessoas que dominam a língua. A grande questão é que eram comunidades distintas que se adaptaram. Hoje os profissionais passam por atualizações constantes e há reforço do idioma, com aulas de alemão dentro da empresa – conta.
O técnico em suporte da T-Systems Roger Fritzke, 29 anos, conta que dos nove anos em que trabalha no local, há três usa o alemão para se comunicar com clientes, junto de outros 17 colaboradores no prédio localizado ao lado do Neumarkt Shopping, no Centro da cidade. Além de aperfeiçoar o idioma, que já mantinha na oralidade da família, Fritzke teve também de melhorar a escrita.
– Foi um desafio, pois tinha a pronúncia boa, mas tive dificuldades com a escrita. Aproximadamente 90% do tempo falamos em alemão no trabalho e também respeitamos o horário deles. Nosso trabalho começa às 4h e vai até o meio-dia, no fuso horário do Brasil.
Na sala ao lado, Vanessa Cristine Wazlawick também atende ligações vindas da Alemanha. A base do idioma usado no trabalho veio do ensino médio e foi um diferencial na contratação. Blumenschein ressalta que é preciso valorizar estes profissionais e incentivar a língua, que se manteve na região. Para isso há ações de incentivo do uso do idioma no país, como a Semana da Língua Alemã, a campanha Eu Falo Alemão (eufaloalemao.com.br), mas é preciso mais:
– É importante conversar com alemão em casa, mas não pode ficar apenas nisso. É preciso ter aulas do idioma não só nas escolas municipais, mas nas estaduais também. Outras línguas precisam estar no currículo, pois elas oportunizam o crescimento profissional e desenvolvimento de habilidades, de poder consultar as literaturas de diferentes áreas direto na fonte – conclui o executivo.
“Nasci em uma dessas famílias típicas do Vale do Itajaí, cheias de misturas e diferentes influências culturais. Sempre brinco que, em essência, sou metade polenta e metade chucrute: tenho avós italianos por parte de mãe e alemães por parte de pai. Essa divergência de origens gerou um dilema na minha casa e, no meio de todos os idiomas falados, em uma época em que ainda não se discutia a importância de criar filhos bilíngues ou trilíngues, só aprendi português.
Meu primeiro contato com a língua alemã foi na educação básica. Estudei em escola pública, no Progresso, bairro onde me criei. Naquele tempo, na sétima série, quando se iniciava tardiamente a introdução de uma língua estrangeira, podia-se optar por inglês ou alemão. Escolhi a segunda e aprendi meia dúzia de palavras, apesar do esforço da professora em uma sala cheia demais. Quando me mudei para a Alemanha, em 2008, descobri o quão pouco sabia e percorri o caminho entre os primeiros verbos e a fluência a duras penas. O inglês sempre serviu de muleta, mas a vida em um país no qual não se domina o idioma transforma as mais simples atividades em um grande desafio. Ir ao mercado para abastecer a geladeira pode ser uma tarefa bem complexa quando todas as explicações são um emaranhado impenetrável de consoantes.Levei uns cinco anos para me sentir a vontade com a língua e então percebi que o maior aprendizado ia muito além das regras gramaticais. Aprender uma língua - seja ela alemão ou qualquer outra - é abrir-se para uma nova cultura. É aceitar que existem diferentes formas de pensar e, hoje, acredito que esse é o maior benefício de um novo idioma. Me tornei mais tolerante, desfiz preconceitos e aprendi, além de ler as consoantes amontoadas, que existem diferentes interpretações do mundo.
Alemão foi a quarta língua que aprendi e agora estou envolvida com a quinta, para contemplar o lado da família que ficou desprestigiado nessa minha Babel interior. Confesso que não foi fácil, que desisti e voltei muitas vezes e que, ainda hoje, me perco na declinação infinita da língua de Goethe. Já aceitei que meu alemão nunca vai ser perfeito, mas que é bom o bastante para conhecer pessoas. Recomendo: é um legado cultural para descendentes ou não e deve ser incentivado. O quanto antes, melhor.”